O Processo de Incubação

O Processo de Incubação

 

Um processo de incubação de Organizações Produtivas Solidárias (OPS) deve ser entendido como a elaboração e a implementação de um programa de ações transdisciplinares, devidamente articuladas e construídas com todas e todos os diretamente afetados no processo de criação e entrega de valor à sociedade, que tenha como objetivos primordiais: fazer com que as trabalhadoras e os trabalhadores retenham para si o valor gerado pelo seu trabalho; promover o reconhecimento do trabalho como gerador da produção e da riqueza; e a valorização do relacionamento entre as trabalhadoras e trabalhadores enquanto produtores e consumidores.

 

Para tanto, é necessária a criação e o fortalecimento de estruturas coletivas e autogestionadas, que deem conta dos processos de produção, agregação de valor, comercialização e relacionamento com a sociedade, que garanta, a partir da decisão do coletivo, a distribuição equitativa dos ganhos financeiros e sociais entre todos os envolvidos.

 

Essa abordagem de incubação está ancorada na perspectiva da Economia Popular Solidária que o Cieps e o FREPS desenvolveram e adotam como fio condutor de suas ações: uma abordagem, acima de tudo, política, que questiona o modo de produção capitalista, seus resultados sobre o bem estar dos trabalhadores e seus impactos em relação ao desenvolvimento humano na sua totalidade, e que pretende construir uma alternativa econômica em que os trabalhadores tenham poder de decisão sobre a produção e a distribuição do valor gerado pelo trabalho coletivo.

 

A EPS é reconhecida e praticada no Cieps a partir dos seguintes princípios:

 

Autogestão: Para entender autogestão, é importante primeiro entender o que significa gestão. Gerir algo significa, na prática, delimitar objetivos e planejar como atingi-los, organizando recursos (pessoas, processos, dinheiro, equipamentos, relacionamentos etc.) para poder alcançá-los. Nas organizações capitalistas, quem define o que vai ser feito, como será feito, como os recursos serão obtidos e alocados são os patrões, e os chefes são os empregados que garantem que as ordens dos patrões sejam cumpridas à risca. Os trabalhadores e trabalhadoras, nas empresas capitalistas, devem obedecer e executar as ordens. Na EPS queremos desconstruir a cultura da opressão que está enraizada nas figuras do patrão e dos chefes. Numa organização autogestionária não deve existir a ordem de cima para baixo e sim a discussão do coletivo e a tomada de decisão levando em consideração a opinião de todos. Para que isso seja viável, não deve haver conhecimento nem função privados, todos devem aprender um pouco de tudo, participar ativamente e todos devem ser líderes.

 

Cooperação: Cooperar significa agir em conjunto para atingir um objetivo comum. A cooperação se dá de diversos modos na economia. Por exemplo, no agronegócio, que faz parte da organização da economia de mercado, o agricultor coopera com o dono da fábrica de leite entregando o produto para beneficiamento e os trabalhadores e trabalhadoras da área de processamento, do transporte, do administrativo etc. cooperam com o padrão para fazer chegar os produtos nos mercados. Mas desse modo a cooperação só beneficia o capitalista, que explora o agricultor, pagando menos do que seu produto vale, ao mesmo tempo que explora os trabalhadores e trabalhadoras da fábrica para poder lucrar no final. Se organizamos a cooperação a partir da EPS, usando o exemplo anterior, o agricultor produz o leite e os trabalhadores e trabalhadoras da área de processamento, do transporte, do administrativo etc. fazem parte da mesma organização, que pertence a todos eles. Ao invés de ter um patrão controlando e orientando os processos e as informações, são os próprios trabalhadores e trabalhadoras, de forma coletiva, que escolhem os rumos que querem seguir. O objetivo é cooperar para que as trabalhadoras e trabalhadores e trabalhadoras tenham o pleno e total controle das decisões, ações, funções e planejamento do trabalho. Na construção socialista, coletiva e solidária, a exploração do trabalho é eliminada, dando lugar a processos verdadeiramente democráticos de produção e distribuição de valor.

 

Solidariedade: O conceito de solidariedade nos remete à ação coletiva, no entender que somos parte de um mesmo todo, que juntos podemos resistir a quaisquer adversidades, podemos avançar para além do que conseguiríamos individualmente. As trabalhadoras e os trabalhadores e trabalhadoras devem desenvolver a percepção de cooperação, de ajuda, de fraternidade, de tolerância, de trabalho e de participação política, entre muitas outras questões que contribuem para uma consciência comum. Essa consciência comum, orientada para objetivos comuns, é a energia que pode mudar o mundo.

 

Dimensão Econômica: Primeiro, precisamos entender o que significa Economia. Para além de dinheiro, a ideia força por trás do conceito se volta a entender como as decisões sobre o que será produzido, em que quantidade, de que qualidade, a qual preço será distribuída essa oferta, e quem ficará com a riqueza gerada pelo trabalho social despendido nesse processo que vai da produção ao consumo. Assim, quando refletimos sobre economia, desvendamos os processos de acumulação de riquezas e podemos perceber que poucos têm muito, e muitos têm pouco. Se não concordamos com essa distribuição absolutamente desigual, podemos nos propor a agir para mudar o estado das coisas. Viver a EPS é uma decisão política, de posicionamento perante o mundo. Buscamos com nossas ações eliminar a exploração de um ser humano por outro e superar a alienação brutal que o capitalismo impõem sobre toda a classe trabalhadora. Nesse processo, deve-se passar pela dominação de todos os setores das cadeias produtivas em que as Organizações Produtivas Solidárias estejam envolvidas, buscando que a riqueza construída pelos trabalhadores e trabalhadoras seja apropriada por eles próprios, ao invés de concentrada nas mãos de poucas pessoas. Portanto, a EPS não é um passatempo para desempregados, no horizonte os trabalhadores e trabalhadoras pretendem ir para além da esfera econômica de suas ações.

 

 

Fases do processo

 

Em relação à metodologia de incubação empregada pelo Cieps, os trabalhos são realizados por meio de uma sistemática de planejamento coletivo e de intervenção pedagógica que envolve o conhecimento e a transformação contínua das dimensões das realidades político-jurídica, psico-socioeducativa e econômico-administrativa que condicionam historicamente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras, levando em consideração um duplo papel: geração de trabalho e renda e construção de um modo de produção oposto ao capitalista e de melhores condições de vida. O processo é constituído em três fases: 1) pré-incubação, 2) incubação e 3) pós-incubação.

 

Cada ação promovida pelos projetos do Cieps busca instigar a percepção dos trabalhadores e trabalhadoras sobre as contradições vivenciadas por todos e como superar a divisão do trabalho, a ideia da propriedade privada que é fundamentada no individualismo, e da oposição entre aqueles que sabem planejar o trabalho e aqueles que apenas executam.

 

Assim, na fase de Pré-incubação, os sujeitos dos coletivos são sensibilizados a respeito das consequências de empreender, o que significa assumir riscos e aprender gestão, e dos significados do ‘empreender’ a partir dos princípios da Economia Solidária, que traz impactos na organização interna da OPS – tomada de decisão, relacionamento interpessoal, gestão de recursos etc. Nesse sentido, os sujeitos do processo são motivados a trazer para o plano concreto suas expectativas, para que sejam formuladas a Missão (objetivo da organização), a Visão (sonho dos trabalhadores e trabalhadoras) e os Valores (combinados de ação) do coletivo, e ainda neste momento são realizadas atividades de assessoria técnica que visam a analisar a viabilidade da linha de ação definida pelo grupo (viabilidade de mercado) e a configuração jurídica mais adequada. O objetivo é dar base para a criação do Plano de Sustentabilidade, foco da próxima fase do processo. Para além da questão organizativa e estruturação propriamente dita da OPS, para todos os segmentos incubados, são feitas sensibilizações para uma das necessidades a serem trabalhadas com muito cuidado, que é a sociorreferenciação dos trabalhadores e trabalhadoras envolvidos no processo. Essa questão é fundamental para criar o necessário relacionamento com seus públicos para fixar realmente quem, como, onde, por que produz.

 

Assim, na fase da Incubação, as OPS concluem um Plano de Sustentabilidade, recebendo formação para indicar metas e planejar o caminho para atingi-las, refletindo sobre os recursos necessários para tanto. Também recebem assistência técnica, agora com foco na implementação do planejado, de forma a garantir que as ações “saiam do papel” e que seus resultados sejam devidamente refletidos em termos de melhorias para o ciclo seguinte de tomada de decisão e também para garantir a transparência dos resultados para o quadro de trabalhadores e trabalhadoras envolvidos na ação. Nesta fase, afloram as contradições e os conflitos que são típicos da transição entre o modo de produção capitalista e a organização solidária, e esses conflitos são considerados relevantes e devidamente abordados no processo, de forma a garantir que os trabalhadores e trabalhadoras resistam e que a pretensa organização produtiva solidária possa passar pela fase de implantação com sucesso.

 

Finalmente, no período de Pós-incubação, as OPS consideradas maduras começam o processo de desligamento da estrutura de incubação. Aos poucos, a tomada de decisão passa de “assistida” para “acompanhada” pela equipe de incubação, isto é, estimula-se que as OPS tomem suas decisões sozinhas, sem participação da incubadora, no entanto a estrutura fica à disposição para dúvidas e questionamentos. A ideia é dar segurança para que os trabalhadores e trabalhadoras manifestem sua autonomia, colocando em prática o que aprenderam, no entanto contando com a estrutura para situações em que ainda não se sintam confortáveis. Além disso, busca-se acompanhar os processos de transparência, a fim de apoiar que os empreendimentos continuem a manifestar-se a partir dos princípios da solidariedade. Essa situação perdura até o desligamento do empreendimento, quando termina o processo de incubação. Os grupos de trabalhadores e trabalhadoras podem permanecer como parceiros ou voltar com a proposição de incubação de novos projetos, que passarão novamente por análise de viabilidade e reiniciar o ciclo de incubação.

 

A metodologia de incubação articula conhecimentos organizados em três processos-chave: o de Sustentabilidade; o Psico-socioeducativo; e o Jurídico.

 

O processo de sustentabilidade tem como objetivo buscar a inserção socioeconômica das OPS, reconhecendo os mercados como espaços dinâmicos de troca que precisam ser politicamente ocupados, para além da lógica da mercadoria. Essa ocupação de mercados deve levar em consideração os princípios da Economia Solidária, assim, as OPS devem buscar equilibrar e resolver as demandas conflitantes que surgem em função das estratégias encetadas para alcançar os objetivos financeiros, sociais e ambientais que são decididas pelo grupo.

 

O processo Jurídico tem como objetivo levantar a configuração jurídica que as OPS possuem, avaliá-las, e verificar como aprimorar no plano jurídico os instrumentos. Em relação aos grupos informais que procuram a incubadora, verifica-se o melhor formato jurídico para a atividade que querem desempenhar depois que amadureçam a cooperação. O processo visa a desenvolver uma visão de transparência administrativa para que a autogestão se manifeste para além do discurso, ou seja, fazendo com que as ferramentas jurídicas se tornem um meio de efetivação da economia solidária.

 

O processo Psico-socioeducativo tem como finalidade viabilizar a qualificação e a integração social dos membros das OPS e seus familiares diretos, bem como a unidade política entre as lideranças das diferentes organizações ligadas a áreas econômicas semelhantes. Nesse sentido, projetos de atendimento psicológico, educacional e social são formulados e implementados interdisciplinarmente a cada ano, visando fundamentalmente o acesso a direitos sociais dos membros das OPS e suas famílias, como forma de alavancar o seu crescimento e desenvolvimento social.

 

As ações de formação e assessoria previstas para as fases do processo de incubação, articuladas a partir desses três eixos, estão sintetizadas no quadro a seguir.

 

Quadro 1 – Articulação entre formação e fases da incubação.

Tipo de ação

Pré-incubação

Incubação

Pós-incubação

Formação

(técnica e política)

  • Economia solidária
  • Significado de “empreender” e trabalhar coletivamente
  • Formato jurídico da OPS
  • Princípios da agroecologia (no caso dos agricultores)
  • Bases para o plano de sustentabilidade: planejamento estratégico e seu desdobramento em planos de ação
  • Articulação para a participação nos processos decisórios para a criação e acesso a políticas públicas
  • Produção e comercialização
  • Processos de trabalho
  • Fortalecimento do processo de tomada de decisão
  • Fortalecimento do espírito de coletividade e resolução de conflitos

Assessoria

  • Criação das declarações de propósito (missão, visão e valores)
  • Análise do ambiente de mercado
  • Análise da viabilidade do negócio
  • Legalização jurídica do empreendimento
  • Orientação para acesso aos direitos sociais
  • Transição agroecológica (no caso dos agricultores)
  • Planejamento dos processos administrativos – pessoas, finanças, processos de trabalho e de produção, marketing
  • Acompanhamento da implantação das ações dos processos administrativos
  • Acompanhamento jurídico da implantação dos processos
  • Acompanhamento da dimensão do relacionamento interno dos trabalhadores e trabalhadoras
  • Desenvolvimento e implantação de controles: avaliação de ações, demonstrações contábeis, replanejamento
  • Apoio à prática dos controles e replanejamento